Catequese sobre a Igreja - XX |
Bento XVI |
Seg, 18 de Maio de 2009 22:17 |
Judas Iscariotes e Matias
Terminando
hoje de percorrer a galeria de retratos dos Apóstolos chamados
directamente por Jesus durante a sua vida terrena, não podemos omitir
de mencionar aquele que é sempre nomeado por último nas listas dos
Doze: Judas Iscariotes. A ele queremos associar a pessoa que depois é
eleita para o substituir, Matias.
Já
o simples nome de Judas suscita entre os cristãos uma reacção
instintiva de reprovação e de condenação. O significado do apelativo
"Iscariotes" é controverso: a explicação mais seguida compreende esta
palavra como "homem de Queriot" referindo-se à sua aldeia de origem,
situada nas vizinhanças de Hebron e mencionada duas vezes na Sagrada
Escritura (cf. Js 15, 25; Am 2, 2).
Outros
interpretam-no como variação da palavra "sicário", como se aludisse a
um guerrilheiro armado com um punhal que em latim se chama sica. Por
fim, há quem veja no sobrenome a simples transcrição de uma raiz
hebraico-aramaica que significa: "aquele que estava para o entregar".
Esta designação encontra-se duas vezes no IV Evangelho, ou seja,
depois de uma confissão de fé de Pedro (cf. Jo 6, 71) e depois durante
a unção de Betânia (cf. Jo 12, 4). Outras passagens mostram que a
traição estava a ser realizada, dizendo: "aquele que o traía"; assim,
durante a Última Ceia, depois do anúncio da traição (cf. Mt 26, 25) e
depois no momento do aprisionamento de Jesus (cf. Mt 26, 46.48; Jo 18,
2.5). Ao contrário, as listas dos Doze recordam a traição como uma
coisa já efectuada: "Judas Iscariotes, o que o traiu", assim diz
Marcos (3, 19); Mateus (10, 4) e Lucas (6, 16) usam fórmulas
equivalentes. A traição como tal aconteceu em dois momentos: antes de
tudo no planeamento, quando Judas se põe de acordo com os inimigos de
Jesus por trinta moedas de prata (cf. Mt 26, 14-16), e depois na
execução com o beijo dado ao Mestre no Getsémani (cf. Mt 26, 46-50).
Contudo, os evangelistas insistem sobre a qualidade de apóstolo, que
competia a Judas para todos os efeitos: ele é repetidamente chamado "um
dos Doze" (Mt 26, 14.47; Mc 14, 10.20; Jo 6, 71) ou "do número dos
Doze" (Lc 22, 3). Aliás, por duas vezes Jesus, dirigindo-se aos
Apóstolos e falando precisamente dele, indica-o como "um de vós" (Mt
26, 21; Mc 14, 18; Jo 6, 70; 13, 21). E Pedro dirá de Judas que "era
do nosso número e tinha recebido o nosso mesmo ministério" (Act 1,
17).
Trata-se
portanto de uma figura pertencente ao grupo dos que Jesus tinha
escolhido como companheiros e colaboradores íntimos. Isto suscita duas
perguntas na tentativa de dar uma explicação aos acontecimentos que
se verificaram. A primeira consiste em perguntar como aconteceu que
Jesus tenha escolhido este homem e nele tenha confiado. Apesar de
Judas ser de facto o ecónomo do grupo (cf. Jo 12, 6b; 13, 29a), na
realidade é qualificado também como "ladrão" (Jo 12, 6a). Permanece o
mistério da escolha, também porque Jesus pronuncia um juízo muito
severo sobre ele: "ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser
entregue" (Mt 26, 24).
Torna-se
ainda mais denso o mistério acerca do seu destino eterno, sabendo que
Judas "se arrependeu e restituiu as trinta moedas de prata aos sumos
sacerdotes e aos idosos, dizendo: "Pequei, entregando sangue
inocente"" (Mt 27, 3-4). Mesmo se em seguida ele se afastou para se ir
enforcar (cf. Mt 27, 5), não compete a nós julgar o seu gesto,
substituindo-nos a Deus infinitamente misericordioso e justo.
Uma
segunda pergunta refere-se ao motivo do comportamento de Judas:
porque traíu Jesus? A questão é objecto de várias hipóteses. Alguns
recorrem ao factor da sua avidez de dinheiro; outros dão uma
explicação de ordem messiânica: Judas teria ficado desiludido ao ver
que Jesus não inseria no seu programa a libertação político-militar do
seu próprio País. Na realidade os textos evangélicos insistem sobre
outro aspecto: João diz expressamente que "tendo já o diabo metido no
coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que O entregasse" (Jo 13,
2); analogamente escreve Lucas: "Entrou satanás em Judas, chamado
Iscariotes que era do número dos Doze" (Lc 22, 3).
Desta
forma, vai-se além das motivações históricas e explica-se a
vicissitude com base na responsabilidade pessoal de Judas, o qual
cedeu miseravelmente a uma tentação do maligno. A traição de Judas
permanece, contudo, um mistério. Jesus tratou-o como um amigo (cf. Mt
26, 50), mas, nos seus convites a segui-lo pelo caminho das
bem-aventuranças, não forçava as vontades nem as preservava das
tentações de satanás, respeitando a liberdade humana.
De
facto, as possibilidades de perversão do coração humano são
verdadeiramente muitas. O único modo de as evitar consiste em não
cultivar uma visão das coisas apenas individualista, autónoma, mas ao
contrário em colocar-se sempre de novo da parte de Jesus, assumindo o
seu ponto de vista. Devemos procurar, dia após dia, estar em plena
comunhão com Ele. Recordemo-nos de que também Pedro se queria opor a
ele e ao que o esperava em Jerusalém, mas recebeu uma forte reprovação:
"Tu não aprecias as coisas de Deus, mas só as dos homens" (Mc 8,
32-33)!
Pedro,
depois da sua queda, arrependeu-se e encontrou perdão e graça. Também
Judas se arrependeu, mas o seu arrependimento degenerou em desespero e
assim tornou-se autodestruição. Para nós isto é um convite a ter
sempre presente quanto diz São Bento no final do fundamental capítulo V
da sua "Regra": "Nunca desesperar da misericórdia divina".
Na
realidade Deus "é maior que o nosso coração", como diz São João (1 Jo
3, 20). Por conseguinte, tenhamos presente duas coisas. A primeira:
Jesus respeita a nossa liberdade. A segunda: Jesus espera a nossa
disponibilidade para o arrependimento e para a conversão; é rico de
misericórdia e de perdão. Afinal, quando pensamos no papel negativo
desempenhado por Judas devemos inseri-lo na condução superior dos
acontecimentos por parte de Deus. A sua traição levou à morte de Jesus,
o qual transformou este tremendo suplício em espaço de amor salvífico e
em entrega de si ao Pai (cf. Gl 2, 20; Ef 5, 2.25).
O
Verbo "trair" deriva de uma palavra grega que significa "entregar".
Por vezes o seu sujeito é inclusivamente Deus em pessoa: foi ele que
por amor "entregou" Jesus por todos nós (cf. Rm 8, 32). No seu
misterioso projecto salvífico, Deus assume o gesto imperdoável de
Judas como ocasião da doação total do Filho para a redenção do mundo.
Em
conclusão, queremos recordar também aquele que depois da Páscoa foi
eleito no lugar do traidor. Na Igreja de Jerusalém a comunidade propôs
dois para serem sorteados: "José, de apelido Barsabas, chamado justo,
e Matias" (Act 1, 23). Foi precisamente este o pré-escolhido, de modo
que "foi associado aos onze Apóstolos" (Act 1, 26). Dele nada mais
sabemos, a não ser que também tinha sido testemunha de toda a
vicissitude terrena de Jesus (cf. Act 1, 21-22), permanecendo-lhe fiel
até ao fim. À grandeza desta sua fidelidade acrescenta-se depois a
chamada divina a ocupar o lugar de Judas, como para compensar a sua
traição. Tiramos disto mais uma lição: mesmo se na Igreja não faltam
cristãos indignos e traidores, compete a cada um de nós equilibrar o
mal que eles praticam com o nosso testemunho transparente a Jesus
Cristo, nosso Senhor e Salvador.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário