Catequese sobre a Igreja - XXI |
Bento XVI |
Seg, 18 de Maio de 2009 22:16 |
Paulo, a centralidade de Jesus Cristo
Na
catequese precedente, há quinze dias, procurei traçar os aspectos
essenciais da biografia do apóstolo Paulo. Vimos como o encontro com
Cristo pelo caminho de Damasco revolucionou literalmente a sua vida.
Cristo tornou-se a sua razão de ser e o motivo profundo de todo o seu
trabalho apostólico. Nas suas cartas, depois do nome de Deus, que
aparece mais de 500 vezes, o nome que é mencionado com mais frequência
é o de Cristo (380 vezes). Por conseguinte, é importante que nos
apercebamos de quanto Jesus Cristo possa incidir na vida de um homem e
portanto também na nossa própria vida. Na realidade, Jesus Cristo é o
ápice da história salvífica e, desta forma, o verdadeiro ponto
discriminante também no diálogo com as outras religiões.
Olhando
para Paulo, poderíamos formular assim a pergunta fundamental: como
acontece o encontro de um ser humano com Cristo? E em que consiste a
relação que dele deriva? A resposta de Paulo pode ser compreendida em
dois momentos. Em primeiro lugar, Paulo ajuda-nos a compreender o
valor absolutamente fundante e insubstituível da fé. Eis quanto
escreve na Carta aos Romanos: "Pois estamos convencidos de que é pela
fé que o homem é justificado, independentemente das obras da lei" (3,
28). E também na Carta aos Gálatas: "O homem não é justificado pelas
obras da Lei, mas unicamente pela fé em Jesus Cristo; por isso, também
nós acreditámos em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em
Cristo e não pelas obras da Lei; porque pelas obras da Lei nenhuma
criatura será justificada" (2, 16). "Ser justificados" significa ser
tornados justos, isto é, ser acolhidos pela justiça misericordiosa de
Deus, e entrar em comunhão com Ele, e por conseguinte poder
estabelecer uma relação muito mais autêntica com todos os nossos
irmãos: e isto com base num perdão total dos nossos pecados. Pois bem,
Paulo diz com muita clareza que esta condição de vida não depende das
nossas eventuais boas obras, mas de uma mera graça de Deus: "Sem o
merecerem, são justificados pela sua graça, em virtude da redenção
realizada em Cristo Jesus" (Rm 3, 24).
Com
estas palavras São Paulo expressa o conteúdo fundamental da sua
conversão, o novo rumo da sua vida que resultou do seu encontro com
Cristo ressuscitado. Paulo, antes da conversão, não tinha sido um
homem afastado de Deus e da sua Lei. Ao contrário, era um observante,
com uma observância fiel até ao fanatismo. Mas à luz do encontro com
Cristo compreendeu que com isso tinha procurado edificar-se a si
mesmo, à sua própria justiça, e que com toda essa justiça tinha vivido
para si mesmo. Compreendeu que era absolutamente necessária uma nova
orientação da sua vida. E encontramos expressa nas suas palavras esta
nova orientação: "E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do
Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim" (Gl 2,
20).
Por
conseguinte, Paulo já não vive para si, para a sua própria justiça.
Vive de Cristo e com Cristo: entregando-se a si mesmo, não mais
procurando e construindo-se a si mesmo. Esta é a nova justiça, a nova
orientação que o Senhor nos deu, que a fé nos deu. Diante da cruz de
Cristo, expressão extrema da sua autodoação, não há ninguém que possa
vangloriar-se a si, à própria justiça feita por si e para si! Noutra
carta Paulo, fazendo eco a Jeremias, expressa este pensamento
escrevendo: "Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor" (1 Cor 1, 31 =
Jr 9, 22s); ou: "Quanto a mim, porém, de nada me quero gloriar, a não
ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está
crucificado para mim e eu para o mundo" (Gl 6, 14).
Reflectindo
sobre o significado de justificação não pelas obras mas pela fé,
chegamos ao segundo aspecto que define a identidade cristã descrita
por São Paulo na própria vida. Identidade cristã que se compõe
precisamente por dois elementos: este não procurar-se por si, mas
receber-se de Cristo e doar-se com Cristo, e desta forma participar
pessoalmente na vicissitude do próprio Cristo, até se imergir n'Ele e
partilhar quer a sua morte quer a sua vida. É quanto escreve Paulo na
Carta aos Romanos: "fomos baptizados na sua morte... fomos sepultados
com Ele na morte... estamos integrados n'Ele... Assim vós também:
considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo
Jesus" (Rm 6, 3.4.5.11). Precisamente esta última expressão é
sintomática: para Paulo, de facto, não é suficiente dizer que os
cristãos são baptizados ou crentes; para ele é de igual modo
importante dizer que eles são "em Cristo Jesus" (cf. também Rm 8,
1.2.39; 12, 5; 16, 3.7.10; 1 Cor 1, 2.3, etc.). Outras vezes ele
inverte as palavras e escreve que "Cristo está em nós/vós" (Rm 8, 10; 2
Cor 13, 5) ou "em mim" (Gl 2, 20). Esta mútua compenetração entre
Cristo e o cristão, característica do ensinamento de Paulo, completa o
seu discurso sobre a fé. A fé, de facto, mesmo unindo-nos intimamente a
Cristo, realça a distinção entre nós e Ele. Mas, segundo Paulo, a
vida do cristão tem também um componente que poderíamos dizer
"místico", porque obriga a uma nossa identificação com Cristo e de
Cristo connosco. Neste sentido, o Apóstolo chega até a qualificar os
nossos sofrimentos como os "sofrimentos de Cristo em nós" (2 Cor 1,
5), de modo que "trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para
que também a vida de Jesus seja manifesta no nosso corpo" (2 Cor 4,
10).
Devemos
inserir tudo isto na nossa vida quotidiana seguindo o exemplo de
Paulo que viveu sempre com este grande alcance espiritual. Por um
lado, a fé deve manter-nos numa atitude constante de humildade perante
Deus, aliás, de adoração e de louvor em relação a ele. De facto, o
que nós somos como cristãos devemo-lo unicamente a Ele e à sua graça.
Dado que nada nem ninguém pode ocupar o seu lugar, é preciso portanto
que não tributemos a nada nem a ninguém a homenagem que a Ele
prestamos. Ídolo algum deve contaminar o nosso universo espiritual,
porque neste caso, em vez de gozar da liberdade adquirida cairíamos de
novo numa espécie de escravidão humilhante. Por outro lado, a nossa
pertença radical a Cristo e o facto que "existimos n'Ele" deve
infundir-nos uma atitude de total confiança e de imensa alegria. Para
concluir, de facto, devemos exclamar com São Paulo:"SeDeusestápornós,
quem pode estar contra nós?" (Rm 8, 31). E a resposta é que ninguém
"poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor
nosso" (Rm 8, 39). Por conseguinte, a nossa vida cristã baseia-se na
rocha mais estável e segura que se possa imaginar. E dela tiramos toda
a nossa energia, como escreve precisamente o Apóstolo: "De tudo sou
capaz naquele que me dá força" (Fl 4, 13).
Enfrentemos
portanto a nossa existência, com as suas alegrias e com os seus
sofrimentos, amparados por estes grandes sentimentos que Paulo nos
oferece. Fazendo deles experiência poderemos compreender como é
verdadeiro o que o próprio Apóstolo escreve: "sei em quem acredito e
estou persuadido de que Ele tem poder para guardar, até aquele dia, o
bem que me foi confiado" (2 Tm 1, 12) do nosso encontro com Cristo
Juiz, Salvador do mundo e nosso.
Paulo, o Espírito nos nossos corações
Também
hoje, como nas duas catequeses precedentes, voltamos a São Paulo e ao
seu pensamento. Estamos diante de um gigante não só a nível do
apóstolo concreto, mas também da doutrina teológica,
extraordinariamente profunda e estimulante. Depois de ter meditado na
semana passada sobre o que Paulo escreveu acerca do lugar central que
Jesus Cristo ocupa na nossa vida de fé, vemos hoje o que ele diz sobre
o Espírito Santo e sobre a sua presença em nós, porque também aqui o
Apóstolo tem algo muito importante para nos ensinar.
Conhecemos
o que São Lucas nos diz do Espírito Santo nos Actos dos Apóstolos,
descrevendo o evento do Pentecostes. O Espírito pentecostal traz
consigo um vigoroso estímulo a assumir um compromisso da missão para
testemunhar o Evangelho pelos caminhos do mundo. De facto, o Livro dos
Actos narra uma série de missões realizadas pelos Apóstolos, primeiro
na Samaria, depois ao longo da Palestina, e depois, em direcção à
Síria. São narradas sobretudo as três grandes viagens missionárias
realizadas por Paulo, como já recordei num precedente encontro de
quarta-feira. Mas São Paulo, nas suas Cartas fala-nos do Espírito também
sob outra perspectiva.
Ele
não se detém a ilustrar apenas a dimensão dinâmica e operativa da
terceira Pessoa da Santíssima Trindade, mas analisa também a presença
na vida do cristão, cuja identidade é marcada por ele. Em outras
palavras, Paulo reflecte sobre o Espírito expondo a sua influência não
só no agir do cristão, mas também no seu ser. De facto, ele diz que o
Espírito de Deus habita em nós (cf. Rm 8, 9; 1 Cor 3, 16) e que "Deus
enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho" (Gl 4, 6).
Portanto,
para Paulo o Espírito conota-nos até às nossas profundezas pessoais
mais íntimas. Em relação a isto, eis algumas das suas palavras de
importante significado: "A lei do Espírito que dá a vida libertou-te,
em Cristo Jesus, da lei do pecado e da morte... Vós não recebestes um
Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo; mas
recebestes um Espírito que faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que
clamámos: Abbá, ó Pai!" (Rm 8, 2.15), porque somos filhos, podemos
chamar "Pai" a Deus. Portanto, vemos bem que o cristão, ainda antes de
agir, já possui uma interioridade rica e fecunda, que lhe é concedida
nos sacramentos do Baptismo e da Confirmação, uma interioridade que o
estabelece num relacionamento objectivo e original de filiação em
relação a Deus.
Eis
a nossa grande dignidade: a de não ser apenas imagem, mas filhos de
Deus. Trata-se de um convite a viver esta nossa filiação, a estarmos
cada vez mais conscientes de que somos filhos adoptivos na grande
família de Deus. É um convite a transformar este dom objectivo numa
realidade subjectiva, determinante para o nosso pensar, para o nosso
agir, para o nosso ser. Deus considera-nos seus filhos, tendo-nos
elevado a uma tal dignidade, mesmo se não é igual, à do próprio Jesus,
o único Filho em sentido pleno. Nele é-nos dada, ou restituída, a
condição filial e a liberdade confiante em relação ao Pai.
Assim
descobrimos que para o cristão o Espírito já não é apenas o "Espírito
de Deus", como se diz normalmente no Antigo Testamento e se continua a
repetir na linguagem cristã (cf. Gn 41, 38; Êx 31, 3; 1 Cor 2, 11.12;
Fl 3, 3; etc.). E também não é apenas um "Espírito Santo" entendido
em sentido genérico, segundo o modo de expressar-se do Antigo
Testamento (cf. Is 63,10.11; Sl 51, 13), e do próprio Judaísmo nos seu
escritos (Qunram, rabinismo).
De
facto, pertence à especificidade da fé cristã a confissão de uma
original partilha deste Espírito por parte do Senhor ressuscitado, o
qual se tornou Ele mesmo "Espírito que dá vida" (1 Cor 15, 45).
Precisamente por isso São Paulo fala directamente do "Espírito de
Cristo" (Rm 8, 9), do "Espírito do Filho" (Gl 4, 6) ou do "Espírito de
Jesus Cristo" (Fl 1, 19). É como se quisesse dizer que não só Deus
Pai é visível no Filho (cf. Jo 14, 9), mas que também o Espírito de
Deus se expressa na vida e nas acções do Senhor crucificado e
ressuscitado!
Paulo
ensina-nos também outra coisa importante: ele diz que não existe
verdadeira oração sem a presença do Espírito em nós. De facto,
escreve: "O Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não
sabemos o que havemos de pedir como é verdade que não sabemos como
falar com Deus! ; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos
inefáveis. E aquele que examina os corações conhece as intenções do
Espírito, porque é de acordo com Deus que o Espírito intercede pelos
santos" (Rm 8, 26-27). É como dizer que o Espírito Santo, isto é, o
Espírito do Pai e do Filho, é como a alma da nossa alma, a parte mais
secreta do nosso ser, de onde se eleva incessantemente a Deus um
dístico de oração, da qual nem sequer podemos esclarecer as palavras.
De
facto, o Espírito sempre activo em nós, supre às nossas carências e
oferece ao Pai a nossa adoração, juntamente com as nossas aspirações
mais profundas. Naturalmente isto exige um nível de maior comunhão
vital com o Espírito. É um convite a ser cada vez mais sensíveis, mais
atentos a esta presença do Espírito em nós, a transformá-la em
oração, a ouvir esta presença e a aprender assim a rezar, a falar com o
Pai como filhos no Espírito Santo.
Há
também outro aspecto típico do Espírito que nos foi ensinado por São
Paulo: é a sua ligação com o amor. De facto, São Paulo escreve: "A
esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos
corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5, 5). Na minha
Carta encíclica "Deus caritas est" citei uma frase muito eloquente de
Santo Agostinho: "Se vês a caridade, vês a Trindade" (n. 19), e
prossegui explicando: "O Espírito é aquela força que harmoniza seus
corações [dos crentes] com o coração de Cristo e leva-os a amar os
irmãos como Ele os amou" (ibid.). O Espírito insere-nos no próprio
ritmo da vida divina, que é vida de amor, fazendo-nos pessoalmente
partícipes dos relacionamentos existentes entre o Pai e o Filho. Não é
sem significado que Paulo, quando elenca as várias componentes da
frutificação do Espírito, coloque em primeiro lugar o amor: "O fruto
do Espírito é: amor, alegria, paz, etc." (cf. Gl 5, 22).
E
dado que por definição o amor une, isto significa antes de tudo que o
Espírito é criador de comunhão no âmbito da comunidade cristã, como
dizemos no início da Santa Missa com uma expressão paulina: "... a
comunhão do Espírito Santo [ou seja, a que é realizada por ele] esteja
com todos vós!" (2 Cor 13, 13). Mas, por outro lado, é também verdade
que o Espírito nos estimula a estabelecer relacionamentos de caridade
com todos os homens. Dado que, quando amamos damos espaço ao
Espírito, permitimos que se expresse em plenitude. Compreende-se assim
por que Paulo coloca na mesma página da Carta aos Romanos as duas
exortações: "deixai-vos inflamar pelo Espírito" e "não pagueis a
ninguém o mal com o mal" (Rm 12, 11.17).
Por
fim, o Espírito segundo São Paulo é um penhor generoso que nos é dado
pelo próprio Deus como antecipação e ao mesmo tempo como garantia da
nossa herança futura (cf. 2 Cor 1, 22; 5, 5 Ef 1, 13-14). Aprendemos
assim de Paulo que a acção do Espírito orienta a nossa vida para os
grandes valores do amor, da alegria, da comunhão e da esperança.
Compete a nós fazer deles experiência quotidiana acompanhadas pelas
sugestões interiores do Espírito, ajudados no discernimento pela
orientação iluminadora do Apóstolo.
Paulo, a vida na Igreja
Completamos
hoje os nossos encontros com o apóstolo Paulo, dedicando-lhe uma
última reflexão. De facto, não podemos despedir-nos dele, sem
considerar uma das componentes decisivas da sua actividade e um dos
temas mais importantes do seu pensamento: a realidade da Igreja.
Devemos antes de tudo constatar que o seu primeiro contacto com a
pessoa de Jesus se realiza através do testemunho da comunidade cristã
de Jerusalém. Foi um contacto conturbado. Tendo conhecido o novo grupo
de crentes, ele tornou-se imediatamente um seu orgulhoso perseguidor.
Ele mesmo o reconhece nas suas três Cartas: "Persegui a Igreja de
Deus", escreve (1 Cor 15, 9; Gl 1, 13; Fl 3, 6), quase como a apresentar
este seu comportamento como o pior dos crimes.
A
história mostra-nos que se alcança normalmente Jesus através da
Igreja! Num certo sentido, isto verificou-se, dizíamos, também para
Paulo, o qual encontrou a Igreja antes de encontrar Jesus.
Mas
este contacto, no seu caso, foi contraproducente, não causou a
adesão, mas uma violenta repulsa. Para Paulo, a adesão à Igreja foi
propiciada por uma intervenção directa de Cristo, o qual, tendo-se-lhe
revelado no caminho de Damasco, se identificou com a Igreja e lhe fez
compreender que perseguir a Igreja era perseguir o Senhor. De facto, o
Ressuscitado disse a Paulo, o perseguidor da Igreja: "Saulo, Saulo,
porque me persegues?" (Act 9, 4). Perseguindo a Igreja, perseguia
Cristo. Então Paulo converteu-se, ao mesmo tempo, a Cristo e à Igreja.
Disto compreende-se depois porque a Igreja tenha estado tão presente
nos pensamentos, no coração e na actividade de Paulo. Em primeiro lugar,
porque ele fundou literalmente muitas Igrejas nas várias cidades onde
foi para evangelizar. Quando fala da sua "solicitude por todas as
Igrejas" (2 Cor 11, 28), ele pensa nas várias comunidades cristãs
suscitadas de cada vez na Galácia, na Iónia, na Macedónia e na Acaia.
Algumas daquelas Igrejas também lhe deram preocupações e desgostos,
como aconteceu por exemplo nas Igrejas da Galácia, que ele viu seguir
"outro Evangelho" (Gl 1, 6), ao que se opôs com firme determinação.
Contudo ele sentia-se ligado às Comunidades por ele fundadas de
maneira não fria nem burocrática, mas intensa e apaixonada. Assim, por
exemplo, define os Filipenses "meus caríssimos e saudosos irmãos,
minha coroa e alegria" (4, 1). Outras vezes compara as várias
Comunidades com uma carta de apresentação única no seu género: "A
nossa carta sois vós, uma carta escrita nos nossos corações, conhecida e
lida por todos os homens" (2 Cor 3, 2). Outras vezes ainda mostra em
relação a eles um verdadeiro sentimento não só de paternidade mas até
de maternidade, como quando se dirige aos seus destinatários
interpelando-os como "Meus filhos, por quem sinto outra vez as dores
de parto, até que Cristo se forme entre vós!" (Gl 4, 19; cf. também 1
Cor 4, 14-15; 1 Ts 2, 7-8).
Nas
suas Cartas Paulo ilustra-nos a sua doutrina sobre a Igreja como tal.
Portanto, é muito conhecida a sua original definição da Igreja como
"corpo de Cristo", que não encontramos noutros autores cristãos do I
século (cf. 1 Cor 12, 27: Ef 4, 12; 5, 30; Cl 1, 24). A raiz mais
profunda desta surpreendente designação da Igreja encontrámo-la no
Sacramento do corpo de Cristo. Diz São Paulo: "Uma vez que há um único
pão, nós, embora muitos, somos um só corpo" (1 Cor 10, 17). Na mesma
Eucaristia Cristo dá-nos o seu Corpo e faz-nos seu Corpo. Neste
sentido São Paulo diz aos Gálatas: "todos sois um em Cristo" (Gl 3,
28). Com tudo isto Paulo faz-nos compreender que existe não só uma
pertença da Igreja a Cristo, mas também uma certa forma de equiparação
e de identificação da Igreja com o próprio Cristo. Portanto, é daqui
que deriva a grandeza e a nobreza da Igreja, ou seja, de todos nós que
a ela pertencemos por sermos membros de Cristo, quase uma extensão da
sua presença pessoal no mundo. E daqui se origina, naturalmente, o
nosso dever de viver realmente em conformidade com Cristo. Daqui
derivam também as exortações de Paulo a propósito dos vários carismas
que animam e estruturam a comunidade cristã. Todos eles reconduzem a
uma única fonte, que é o Espírito do Pai e do Filho, sabendo bem que
na Igreja ninguém está desprovido dele, porque, como escreve o
Apóstolo, "a cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito
comum" (1 Cor 12, 7). Mas é importante que todos os carismas cooperem
juntos na edificação da comunidade e não se tornem ao contrário motivo
de dilaceração. A este propósito, Paulo pergunta rectoricamente:
"Estará Cristo dividido?" (1 Cor 1, 13). Ele sabe bem e ensina-nos que
é necessário "manter a unidade do Espírito, mediante o vínculo da
paz. Há um só Corpo e um só Espírito, assim como a vossa vocação vos
chamou a uma só esperança" (Ef 4, 3-4).
Sem
dúvida, realçar a exigência da unidade não significa afirmar que se
deva uniformizar ou nivelar a vida eclesial segundo um único modo de
agir. Noutro texto Paulo ensina a "não apagar o Espírito" (1 Ts 5,
19), isto é, a dar generosamente espaço ao dinamismo imprevisível das
manifestações carismáticas do Espírito, o qual é fonte de energia e de
vitalidade sempre nova. Mas se há um critério do qual Paulo não
prescinde é a mútua edificação: "que tudo se faça de modo a edificar"
(1 Cor 14, 26). Tudo deve concorrer para construir ordenadamente o
tecido eclesial, não só sem estagnação, mas também sem fugas ou
excepções. Depois, há outra Carta paulina que chega a apresentar a
Igreja como esposa de Cristo (cf. Ef 5, 21-33). Com isto retoma-se uma
antiga metáfora profética, que fazia do povo de Israel a esposa do
Deus da aliança (cf. Os 2, 4.21; Is 54, 5-8): com isto pretende-se
dizer quanto sejam íntimas as relações entre Cristo e a sua Igreja,
quer no sentido de que ela é objecto do amor mais terno da parte do
seu Senhor, quer também no sentido de que o amor deve ser recíproco e
que, por conseguinte também nós, como membros da Igreja, devemos
demonstrar fidelidade apaixonada em relação a Ele.
Definitivamente,
está em jogo a relação de comunhão: a vertical entre Jesus Cristo e
todos nós, e também a horizontal entre todos os que se distinguem no
mundo pelo facto de "invocar o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo" (1
Cor 1, 2). Esta é a nossa definição: nós pertencemos àqueles que
invocam o nome do Senhor Jesus Cristo. Portanto compreende-se bem
quanto seja desejável que se realize o que o próprio Paulo deseja ao
escrever aos Coríntios: "Mas se todos começarem a profetizar e entrar
ali um descrente qualquer ou simples ouvinte, há-de sentir-se tocado
por todos, julgado por todos; os segredos do seu coração serão
desvendados e, prostrando-se com o rosto por terra, adorará a Deus,
proclamando que Deus está realmente no meio de vós" (1 Cor 24-25).
Assim deveriam ser os nossos encontros litúrgicos. Um não cristão que
entra numa assembleia nossa, no final deveria poder dizer:
"Verdadeiramente Deus está convosco". Peçamos ao Senhor que sejamos
assim, em comunhão com Cristo e em comunhão entre nós.
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